19 de agosto de 2017

Carta aberta a Alberto Contador

por Octávio Lousada Oliveira


(Fotografia: Facebook La Vuelta)
Querido Alberto (permite-me que te trate assim),

Podia ter sido um domingo igual a tantos outros. De apatia, no sofá, e a transformar o zapping em modalidade olímpica, como se fosse um velho de 71 anos preso num corpo de um jovem de 17. Mas havia Paris-Nice, a primeira corrida por etapas, a doer, da temporada. Naquela tarde de 18 de Março de 2007 a televisão não saiu do Eurosport.

No sofá ao lado, igualmente recostado e pachorrento, estava o Diogo. Ambos tentávamos antecipar o desfecho da última etapa da Corrida do Sol e, claro, quem alcançaria o triunfo final. Sabia quem eras, mas naquele domingo – aliás, naquela semana - percebi que a tua forma inconfundível de dançar sobre a bicicleta tinha chegado para ficar. E para marcar. Atacaste de longe – só mesmo há dez anos poderia ser novidade -, chegaste a Nice isolado e ganhaste. Tinhas 24 anos, lembras-te?

Quando cruzaste a meta, 18 segundos antes do grupo do Rebellin, do Evans, do Rodríguez e dos irmãos Schleck, olhei preguiçosamente para o lado, com a convicção e a arrogância juvenis de quem se alegra por ter razão antes do tempo, e disse ao Diogo: “Este gajo vai ganhar a Volta a França.” Ele viu nas minhas palavras pouco mais que o vaticínio de um louco. Eras muito novo, não tinhas sequer estatuto de chefe-de- fila – e como era forte aquela Discovery Channel -, o contra-relógio iria penalizar-te, enfim, o cepticismo de sempre. Não era a tua hora, era essa a tese dele. 

Hoje, sabemos o que aconteceu: meteste esse Tour no bolso, apesar da desclassificação do Rasmussen, com quem tiveste batalhas épicas Alpes e Pirenéus a cima. Vestiste a camisola amarela por cima da branca. O último a fazê-lo fora o Ullrich, uma década antes. Estava feita a passagem de testemunho. O ciclismo descobria um supertalento; eu, órfão desde a saída de cena do Jan, encontrava novamente um ídolo.

A partir daí, na qualidade de fã, torci para que a Volta a França (e a modalidade, por consequência) se tornasse uma tremenda monotonia: quis que no topo de todas montanhas fizesses o gesto que te valeu o epíteto de El Pistolero e que, ano após ano, chegasses de maillot jaune aos Campos Elísios.

Sempre que terminava um Tour (ou Giro ou Vuelta), contava os dias para que o(a) seguinte
tivesse início. Quando mudavas de equipa, estudava ao pormenor quem poderiam ser os teus melhores gregários. Quando tinhas uma jornada gloriosa – e foram tantas - ou davas espectáculo em cenários improváveis, acreditava que as tuas forças seriam mesmo inesgotáveis e que no dia seguinte repetirias a dose. Quando os teus níveis de clembuterol dispararam e foste suspenso, aceitei quase acriticamente o argumentário em torno bife que te fora servido. Quando o Armstrong te pôs em causa, quis responder-lhe por ti porque todos sabemos que não se dá troco a uma fraude. Quando o Tinkov te destratou, ocorreram-me milhentas ofensas para lançar àquele ingrato. Quando falhaste e te desculpaste com quedas ou lesões, não reconhecendo a superioridade dos adversários, perdoei-te. Tinhas e tens créditos de sobra.

Porque os ídolos são assim mesmo: imperfeitos, mas merecedores de redenção. Tu, aliás, nunca pretendeste ser o protagonista de um admirável mundo novo. Sempre recusaste o afã colectivo por gente correcta, polida, plástica, higiénica e aborrecida (talvez por isso nem nas formações por onde passaste tenhas conseguido ser consensual). Foste a antítese de tudo isso. Jamais te propuseste a ser o agregador de paixões do pós-Armstrong. Tão-pouco o yang do pré-Froome. Não foste o herói clássico que o desporto nos ofereceu; foste o iconoclasta romântico de que o ciclismo precisou.

Pois é, Alberto, pedalei ao teu lado nas vitórias no Etna, em Plateau de Beille ou no Angliru. Bati-me por ti quando o Lance decidiu regressar, sem que tivesse percebido que a modalidade tinha uma nova hierarquia. Também eu me considerei ultrajado quando te roubaram o Tour 2010 e o Giro 2011. Fui o Sérgio Paulinho naquela jornada da Volta a Espanha, entre Santander e Fuente Dé, em que o teu ataque kamikaze virou a classificação ao contrário. Fracturei a tíbia e mantive-me na perseguição ao Nibali naquela 10.ª tirada do Tour 2014, pouco antes de a dor me forçar a desistir. Livrei-me do Froome em La Farrapona e Puerto de Ancares como fizeste no teu regresso vitorioso à Vuelta 2014. Em 2015, tentei seguir na tua roda quando fizeste história no Mortirolo e mostraste à Astana do Aru e do Landa que nem jogando sujo conseguiriam estar ao teu nível. Não escondi as escoriações nem disfarcei as dores nas ocasiões em que beijaste o asfalto e foste forçado a abandonar. Tal como não vou conter uma lágrima quando chegares a Madrid, dentro de 20 dias, e fizeres o adeus por que já esperava mas para o qual nunca estive verdadeiramente preparado.

Parece tudo conversa de groupie e de uma devoção unilateral, eu sei, mas é isso que os ídolos nos oferecem: a aparente sensação de que, ao vê-los, também nós fizemos parte das (suas) histórias. E da História.

Alberto, hombre, está na hora de ires. Eu deixo. Prefiro que vás assim: não sendo o melhor, mas continuando a ser o maior. Leva todas as camisolas (rosas, amarelas e vermelhas) e que te acompanhe a glória que é tua por direito. Nem sequer te exijo que venças a Vuelta. Peço-te apenas mais umas pedaladas com paixão, deixa-nos esse legado. Até porque os românticos como tu estão em vias de extinção.

Octávio Lousada Oliveira é jornalista da revista Sábado. Escreve habitualmente sobre política, mas tende a exasperar entre Novembro e Fevereiro, quando o ciclismo vai de “férias”.

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