15 de julho de 2018

O espectáculo do caos

(Fotografia: ©ASO/Alex Broadway)
Há um sentimento ambíguo ao considerar espectáculo momentos de tanto sofrimento. Não é que se goste da desgraça alheia, mas num dia em que quedas, furos, avarias, são algo que fazem parte de uma modalidade que, afinal, tem na capacidade de sofrimento dos atletas uma grande influência para se tornar num vencedor, então o caos torna-se num autêntico espectáculo.

Para quem gosta de clássicas do pavé (admitindo que é o caso), um dia como este numa grande volta como o Tour é quase como se fosse feriado. É para ver e rever, pois ao contrário do que acontece com algumas etapas de montanha que acabam por desiludir, no pavé o espectáculo é quase garantindo. Foi uma boa etapa, com muita emoção e com o bónus de se saber que, mesmo que pareça uma clássica, o que está mesmo em causa é uma vitória numa corrida que só acaba daqui a duas semanas. Um mau dia e tudo poderia acabar. Que o diga Richie Porte!

O australiano da BMC foi igual a si próprio, imitando o que fez há um ano na Volta a França. Por duas vezes, na etapa nove, cai e abandona. Talvez reste a pequena consolação que, pelo menos desta feita, a lesão não é tão grave, pelo que pode pensar na Vuelta. Fez uma luxação no ombro, enquanto em 2017 a sua época acabou naquele dia. Porte também resolveu imitar Chris Froome. Em 2014 o britânico, então colega de Porte na Sky, caiu na etapa do pavé... antes de começarem os sectores. Foi o que aconteceu com australiano. É mau de mais. É azar a mais. 33 anos e nem um pódio numa grande volta. Poderá estar a caminho da Trek-Segafredo, numa nova fase da carreira, mas também será a última fase. O tempo começa a esgotar-se para Porte.

Agora interessa quem no Tour continua. E que dia infernal foi para praticamente todos os candidatos à geral. Romain Bardet (AG2R) experimentou uma parte do arsenal de bicicletas da equipa. Depois de tantos problemas, perder sete segundos para a concorrência directa é algo que até se pode classificar um dia bom!

Chris Froome (Sky) caiu. Mikel Landa foi tocado enquanto estava a hidratar-se e foi impossível evitar uma queda que o próprio disse esperar que "seja só chapa e pintura". Com Alejandro Valverde e Nairo Quintana na frente e com José Joaquín Rojas já fora devido a uma das muitas quedas do dia, a Movistar esteve unida e foi buscar Landa para o grupo dos líderes. Quintana andou o tempo todo a tentar simplesmente manter a bicicleta com as rodas no pavé. Ser tão levezinho no terreno destes é simplesmente um inferno. Mas sobreviveu.

Vincenzo Nibali (Bahrain-Merida), Adam Yates (Mtichelton-Scott), Ilnur Zakarin (Katusha-Alpecin), Rafal Majka (Bora-Hansgrohe), Primoz Roglic (Lotto-Jumbo) e Jakob Fuglsang (Astana), todos sofreram em algum momento dos 156,5 quilómetros entre Arras e Roubaix. Acabaram todos juntos.

Só dois ciclistas fizeram diferenças. Um pela negativa. Se os sete segundos perdidos por Bardet e Landa não são graves, já 1:28 minutos deixa Rigoberto Uran a ter mais trabalho para fazer na montanha se quiser repetir o pódio de 2017. Mau dia para o líder da EF Education-First-Drapac p/b Cannondale. Já Bob Jungels (Quick-Step Floors) arrancou na fase final para ganhar alguns segundos aos favoritos e, na geral, tem agora 52 segundos de vantagem sobre, por exemplo, Chris Froome.

Com o abandono de Porte, pensou-se: chegou a vez de Tejay van Garderen! Mas nem se pode colocar o americano entre aqueles que ficaram um pouco mais longe do top dez, como aconteceu com Uran. Van Garderen tinha de agarrar esta oportunidade de liderar a BMC quando a equipa mais precisava, mas não. Tudo correu mal e perdeu quase seis minutos. Também o tempo começa a esgotar-se para este ciclista que está quase a chegar aos 30 anos. Mas num dia em que Degenkolb demonstrou que é melhor não dar um ciclista como acabado, não se o dirá de Van Garderen, mas que cada vez transmite menos confiança. Isso é inevitável considerar.

(O texto continua por baixo do vídeo.)



A clássica dentro da etapa no Tour

Foi preciso esperar pelos últimos sectores dos 15 do dia para ver a disputa pela vitória no dia começar a aquecer. As primeiras movimentações começaram por volta dos 50 quilómetros para o fim, mas só um pouco depois é que os homens que tanto brilham na fase das clássicas apareceram definitivamente. Um ataque aqui, outro ali, mas foi a movimentação entre Greg van Avermaet (vencedor do Paris-Roubaix em 2017), John Degenkolb (ganhou o monumento do pavé em 2015) e Yves Lampaert (que não será uma surpresa que um dia o venha a ganhar) que foi decisiva. O trio uniu-se para deixar para trás um Peter Sagan que não estava bem colocado naquele momento e não encontrou ajuda para a perseguição.

Lampaert cometeu o erro táctico de não tentar um ataque nos metros finais, já que ao sprint era de adivinhar que não teria capacidade para se debater com os companheiros de ocasião. Avermaet tentou, mas pareceu um pouco sem força frente a um Degenkolb a precisar e muito de uma grande vitória. Aí está ela! O alemão da Trek-Segafredo nunca mais havia sido o mesmo depois do atropelamento em 2015, enquanto treinava. Acabou em lágrimas ao vencer. Foi em Roubaix onde viveu um dos melhores momentos da carreira e espera-se agora que possa ser o local que marque o seu renascer.

A Avermaet e à BMC restou conseguir manter a camisola amarela e até aumentar um pouco a diferença para Geraint Thomas (Sky), agora de 43 segundos. Irá vesti-la pelo menos mais um dia.

Philippe Gilbert ainda foi tirar o quarto lugar a Peter Sagan, mas o eslovaco consolidou um pouco mais a liderança na classificação dos pontos, um dos objectivos do ciclista da Bora-Hansgrohe, que procurava um triunfo que teria um toque especial já que venceu o Paris-Roubaix este ano.

Mesmo com tantos ciclistas pouco habituados ao pavé, a corrida teve momentos em que pareceu o mítico monumento. Além de todos os incidentes, a etapa foi resolvida por um processo de eliminação a cada passagem nos sectores. Quando os candidatos à geral ficaram praticamente todos para trás, passou a ver-se duas provas: uma pela sobrevivência de quem chegou a um ponto que só queria chegar ao fim, a outra pela vitória entre os homens que adoram o pavé.

Pode ver aqui as classificações.

E se há dia que vale a pena ver as imagens da perspectiva de dentro do pelotão, este é certamente um deles!

(O texto continua por baixo do vídeo.)



10ª etapa: Annecy - Le Grand-Bornand, 158,5 quilómetros

Segunda-feira é dia de recuperar o fôlego e das eventuais mazelas porque na terça chega a montanha. Será a fase dos Alpes. Esperam ao pelotão três etapas duras, com a de quinta-feira a ter três categorias especiais, no dia que marca o regresso do Alpe d'Huez ao percurso do Tour.




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