Encontrar a próxima grande figura do ciclismo é um trabalho minucioso e que não é executado por qualquer pessoa. E claro que a modalidade não vive só de estrelas, pelo que o scouting assume uma importância extrema para garantir que as equipas tenham os ciclistas que a tornem competitiva e equilibrada. A Quick-Step Floors é uma das principais estruturas mundiais, que nos últimos anos soma mais de 50 vitórias por temporada. Ricardo Scheidecker é o director técnico e o responsável português esteve por cá para falar sobre scouting numa formação de treinadores de ciclismo, da Federação Portuguesa de Ciclismo. Sendo uma equipa sempre à procura de bons ciclistas, os portugueses também estão no radar.
Se não desperdiça a oportunidade para contratar um ciclista experiente e com currículo - como Philippe Gilbert este ano -, a estrutura belga também tem sido o trampolim para jovens que ali começam a construir carreiras de sucesso. Isso muito se deve ao trabalho de scouting que é desenvolvido. Scheidecker lança desde logo o nome James Knox, britânico de 22 anos que estava na Team Wiggins, "um trepador puro" - como descreveu o responsável português - e que pode no futuro vir a ocupar as vagas deixadas por Daniel Martin e David de la Cruz que rumaram a outras equipas. É um dos reforços da Quick-Step Floors para 2018.
"Acho que o Enric Mas vai certamente melhorar e depois temos jovens com muito talento já confirmado: Julian Alaphilippe, Bob Jungels, Fernando Gaviria... O Laurens de Plus teve o primeiro ano como profissional e sem dúvida que irá fazer melhor em 2018. Eles estão na fase de crescimento, de transição. O ciclismo não se deve preocupar com a falta de talentos ou com a falta de corredores com grande capacidade", destacou Scheidecker, que se referia também a atletas de outras equipas, como Pavel Sivakov, russo de 20 anos contratado pela Sky.
"Desde 1997 que houve uma mudança na mentalidadezinha nacional para uma mentalidade internacional"
Apesar da Quick-Step Floors ser uma equipa muito virada para as clássicas do norte, para o calendário da Bélgica e para os sprints, Ricardo Scheidecker salientou que o scouting é mais abrangente e inclui também atletas com potencial para discutir classificações gerais de provas por etapas: "Todos os corredores com valor interessam-nos." E será que poderemos ver um português na formação belga? "Para 2018 a equipa está feita, mas tudo pode acontecer em 2019!" Estava lançado o mote para se falar sobre o ciclismo nacional e como cada vez mais há corredores lusos no World Tour, como as recentes chegadas de Ruben Guerreiro (Trek-Segafredo), Nuno Bico (Movistar) e José Gonçalves (Katusha-Alpecin).
"Estamos de olho nos ciclistas portugueses. Cá há talento. Quem faz o scout veio ver várias corridas", realçou. Porém, para compreender esta fase da modalidade em Portugal, Scheidecker recua ao final dos anos 90. "Desde 1997 que houve uma mudança na mentalidadezinha nacional para uma mentalidade internacional. Estamos a falar de algo que aconteceu há 20 anos, mas os resultados estão à vista. Se não fossem essas pessoas, o ciclismo português estaria muito pior", explicou. "Essas pessoas" são Artur Lopes, então presidente da federação, Francisco Nunes, director geral, e José Luis Algarra, espanhol que naquela altura assumiu o cargo director técnico. "Esse trabalho, também com o José Poeira [seleccionador nacional], elevou o profissionalismo, o trabalho nas camadas jovens e deu muitas oportunidades a vários corredores de competir no estrangeiro e de fazer várias experiências com os juniores e sub-23, que no passado não aconteciam", referiu.
Até ao momento não há nenhum anúncio de mais um português a chegar ao World Tour - há um ano a contratação de Nuno Bico foi divulgada quase no ano novo - mas Ricardo Scheidecker deixa alguns nomes que já vão chamando a atenção. "O João Almeida é um excelente ciclista, já ouvi falar do Tiago Antunes, os gémeos Oliveira são também excelentes corredores... e há vários." Entretanto, estes ciclistas confirmaram dar um passo importante para continuar a confirmar as expectativas, pois João Almeida será companheiro de Ivo e Rui Oliveira na Hagens Berman Axeon e Tiago Antunes irá integrar a equipa do Centro Mundial de Ciclismo, o projecto da UCI.
Como é feito o scouting
O scouting é um processo que vai muito além da detecção de talentos. É necessário recorrer a métodos mais científicos para perceber se se está de facto perante o ciclista com as características que se procura. E claro, como Scheidecker destacou "o corpo humano não é uma ciência exacta", o que faz com que por vezes as expectativas não sejam confirmadas. Porém, o trabalho que hoje em dia é realizado reduz muito a margem de erro. Quem tem esta função tem de ter a capacidade para "identificar os corredores que aparecem e os que não aparecem", ou seja, não se fica apenas por aqueles que se destacam com vitórias ou exibições mais notórias. Mas reconhecer as qualidades de um jovem ciclista é apenas um primeiro passo. o "primeiro filtro", como descreveu Scheidecker.
"A partir daí é fundamental ter um acompanhamento próximo desses corredores, testá-los a nível fisiológico para percebermos se o que deu a entender ter, se confirma efectivamente", explicou. Ter uma boa capacidade física "não se traduz necessariamente em resultados", pelo que o responsável realça a importância de quem faz o scouting saber "identificar os ciclistas no meio do pelotão" com o potencial e não ser ser apenas através das classificações.
"Acho que [as equipas de formação] fazem falta, mas têm um custo elevado"
Claro que exames médicos fazem parte do processo para se "perceber se o ciclista tem 'motor'". Ter uma estrutura sub-23 que permita poder seguir de perto um possível reforço para a equipa principal tornou-se dispendioso. A Quick-Step Floors acabou com a sua e este ano a BMC anunciou que iria fazer o mesmo. Isto significa que é necessário ser feito um trabalho próximo com o ciclista e com a formação que representa, até que eventualmente se parta para a oferta de um contrato.
Scheidecker considera que estas equipas de desenvolvimento são muito importantes: "Quem corre nestas equipas sente a estrutura da do World Tour. Acho que fazem falta, mas têm um custo elevado. Temos de contratar os ciclistas e ter veículos e as pessoas para formar a equipa. É mais pequena [do que a do World Tour], mas mesmo que seja 30%... já é bastante", frisou. Uma das vantagens é os ciclistas enfrentarem desde logo outro tipo de profissionalismo, mesmo que ainda estejam numa fase de formação. "Já têm responsabilidades se querem mesmo ser ciclistas profissionais. Estamos a formá-los, mas eles já não estão num escalão de formação", reiterou. Sem estas estruturas, a solução tem de ser outra: "Temos equipas com quem trabalhamos e sabemos o que fazem com os ciclistas."
A contratação
"Vamos sempre acompanhando o ciclista. Partimos para a contratação quando verificamos que todas as qualidades e condições do atleta são suficientemente sólidas e que nos dão garantias que é uma contratação certa, que é uma aposta com risco de perda muito baixo", explicou o responsável. Este processo pode demorar mais do que um ano, pelo que poderá acontecer uma surpresa na altura de oferecer um contrato, ou seja, o ciclista assinar por outra equipa.
"Nós somos pessoas sérias e tentamos criar condições para que o corredor, no momento em que decida, o faça por quem esteve ao seu lado. É evidente que não acontece sempre. Temos as nossas desilusões. E também não queremos ninguém que não esteja imbuído da nossa mentalidade. Se acabar por decidir pelo dinheiro e se esse foi o factor decisivo, provavelmente acaba por [o ciclista] também não nos interessar. Acontece e nós temos de gerir isso", salientou.
"Os direitos televisivos seriam uma ajuda, mas não cobririam nem 20% do orçamento"
A conversa regressou à questão das equipas de desenvolvimento que as do World Tour foram terminando, pois conhecer a personalidade de um ciclista também é mais fácil quando se trabalha com ele numa base diária. Falamos de orçamentos de milhões - o da Sky ultrapassa os 30, por exemplo -, mas são conhecidos os problemas que as estruturas do ciclismo têm em sobreviver, mesmo quando se fala de uma Quick-Step Floors, já com tantos anos de história, pelo que suportar mais uma estrutura é nesta fase da vida da modaldiade difícil.
Quando se fala de finanças, fala-se dos "problemas estruturais do ciclismo". "Vamos ver o que o novo presidente [da UCI, David Lappartient] pensa fazer. Que possa trazer um novo projecto, sobretudo pensado", disse. Para Scheidecker a modalidade irá sempre viver dos patrocínios. "Os direitos televisivos seriam uma ajuda, mas não cobririam nem 20% do orçamento", considera. Mas será que poderia cobrir o necessário para ter uma equipa de desenvolvimento? "Se assim fosse, seria um grande negócio", afirmou.
A resposta até poderia passar pela venda de merchandising. "Se se vendesse como vende um clube que disputa a Liga dos Campeões... se calhar já se seria auto-suficiente. Mas nós vendemos publicidade e é isso que vamos fazer sempre, a não ser que chegue aqui alguém com muito dinheiro e que compre tudo." No entanto, esta sugestão fez lembrar o que aconteceu com Oleg Tinkov que comprou uma estrutura, mas quando decidiu sair, colocou um ponto final e o resultado foi o adeus de uma das principais equipas do pelotão.
(Leia aqui a segunda parte da entrevista a Ricardo Scheidecker)
»»Miguel Salgueiro: "Vou apostar mais na estrada. Acho que é o caminho certo"««
»»Rui Oliveira: "Foi um primeiro ano espectacular. Aprendi coisas que nunca pensei aprender"««
(Leia aqui a segunda parte da entrevista a Ricardo Scheidecker)
»»Miguel Salgueiro: "Vou apostar mais na estrada. Acho que é o caminho certo"««
»»Rui Oliveira: "Foi um primeiro ano espectacular. Aprendi coisas que nunca pensei aprender"««
Sem comentários:
Enviar um comentário