7 de outubro de 2018

"O homem do dia" partiu aos 86 anos

por Vítor Sequeira Martins


(Fotografia: Federação Portuguesa de Ciclismo)
Foi um rei. Em competição e na vida. Em cima da bicicleta, corpo curvado, mãos firmes apoiadas nos guiadores curvos, óculos de sol a tapar a luminosidade, boné enterrado na cabeça para proteger do sol, pedalada larga e forte, galgando quilómetros de asfalto e, por vezes, terra batida e sempre na dianteira da concorrência. Era assim que o povo via o seu ídolo durante a Volta a Portugal, na década de 50, os anos de ouro do melhor e mais completo ciclista português de sempre. Alves Barbosa partiu há cerca de uma semana, mas deixou um legado difícil de igualar. Mais do que um ciclista, Alves Barbosa (1931-2018) foi desde que surgiu a alma maior do ciclismo nacional. Primeiro como praticante, depois como treinador, dirigente, comentador, intelectual da modalidade. Em todos um traço comum: a competência, a genialidade.

Alves Barbosa, natural de Fontela (Figueira da Foz) herdou do pai, também ele ciclista, o gosto pela modalidade, onde foi praticamente tudo: ciclista - vencedor da Volta a Portugal por três vezes (1951, 1956 e 1958), sempre a defender as cores do Sangalhos (a única equipa que representou enquanto ciclista), treinador do Benfica – a sua primeira equipa -, director técnico nacional, formador, autor de vasta bibliografia sobre ciclismo, e também comentador de televisão, rádio e jornais. Também foi actor de cinema. No auge da popularidade e após ganhar a Volta de 1958, Barbosa protagonizou a fita "O Homem do Dia", onde contracenou com Maria Dulce, no papel de uma professora primária que se enamora pelo herói do momento. 

Foi o primeiro ciclista a ganhar por três vezes a Volta a Portugal, mas poderia ter vencido muitas mais. Numa altura em que apenas os genuínos talentos e força física imperavam - os longos e científicos treinos, seguidos de estágios em altitude (ou não), a alimentação cuidada e as ajudas suplementares (há até quem lhes chame de doping...) ainda não existiam - Alves Barbosa alcançou o primeiro triunfo na Volta em 1951, depois de resolvido um "diferendo" com o pai, que lhe lançou um ultimato: "ou os estudos, ou o ciclismo". Ganhou o ciclismo, claro! Curiosamente, e apesar de ser o melhor ciclista nacional da altura apenas em 1956 é que Alves Barbosa voltaria a ganhar a mais importante prova do ciclismo nacional. 

E tudo porque em 1952 foi impedido de competir, por estar a cumprir serviço militar. Nos dois anos seguintes, 1953 e 1954, a Volta não se realizou e em 1955 foi violentamente impedido de ganhar por um grupo de adeptos do FC Porto. Corria-se a derradeira tirada da prova (Viseu-Porto), Alves Barbosa vestia a camisola amarela e tudo indicava que já nada nem ninguém lhe tiraria a vitória. Mas não era assim que pensava um grupo de adeptos da equipa portista, que pretendiam ver Sousa Santos, o ciclista da equipa mais representativa da Cidade Invicta, ser consagrado como vencedor. 

Desta forma, à passagem do pelotão pelos Carvalhos, um grupo organizado agrediu Alves Barbosa e, logo ali, impediu-o de prosseguir o caminho e retirou-lhe a possibilidade de ganhar a sua segunda Volta a Portugal. Por ironia, a vitória também acabou por não sorrir a Sousa Santos. No meio da confusão instalada pela agressão ao líder da prova, Ribeiro da Silva, a correr com as cores do Académico do Porto, conseguiu passar incólume e chegar à meta isolado e com tempo necessário para ser declarado vencedor. Os agressores de Alves Barbosa acabaram detidos e, anos mais tarde, – a lentidão da justiça já vem de longe... - foram julgados. No decorrer da audiência confessaram o plano gizado para dar dar a vitória a Sousa Santos.

Antes dos registos gloriosos de Joaquim Agostinho na Volta a França, já Alves Barbosa andara a pedalar no Tour, onde foi o primeiro português a participar, e tendo como melhor registo o 10.º lugar da classificação, registado em 1956.

No longo palmarés de vitórias de Alves Barbosa ficou a faltar um triunfo na clássica Porto-Lisboa, uma maratona que ligava anualmente as duas cidades numa etapa única. Por quatro ocasiões Alves Barbosa competiu nesta dura prova e em nenhuma conseguiu ser o primeiro. Mas uma edição houve em que o ciclista da Figueira da Foz esteve perto de alcançar a meta em primeiro, mas, por ironia do destino, não o conseguiu. 

Em 1954, na Calçada de Carriche, Alves Barbosa e mais dois ciclistas destacaram-se do pelotão e aceleraram em direcção ao estádio de Alvalade, em cuja pista terminaria a prova. Contudo e devido às obras de edificação do novo estádio de Alvalade, Barbosa convenceu-se que o final da prova seria noutro local, talvez no Campo Grande, e seguiu em direcção oposta à meta. Mais à frente percebeu o erro e quando quis voltar, já não teve força para lutar pela vitória. Viu os companheiros de aventura seguirem pelo caminho certo e cortarem a meta. A ele, como pessoa inteligente que era, restou-lhe rir do engano e de si próprio. Como fazem os fora de série. Lote onde sempre esteve e como tal será recordado.

O jornalista Vítor Sequeira Martins acompanhou e reportou praticamente todas as grandes provas nacionais durante duas décadas.

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