5 de março de 2019

O sentimento de traição

Denifl e Preidler foram suspensos pela UCI
Florian Sénéchal venceu a corrida Le Samyn, garantindo que a Deceuninck-QuickStep mantenha o pleno nas clássicas de pavé de 2019. Três corridas, três vitórias, três ciclistas diferentes. Este deveria ser o destaque do dia. Mais um excelente espectáculo de ciclismo, mais um excelente triunfo de uma equipa fenomenal. Porém, não há volta a dar. O doping faz novamente as primeiras páginas - se assim se pode dizer num mundo cada vez mais virtual e menos de papel - no que ao ciclismo diz respeito. A palavra traição foi hoje utilizada e percebe-se porquê. Um novo escândalo de doping está a ameaçar crescer. Começou no esqui, já afectou o ciclismo e são muitos os sacos de sangue que se aguarda para saber se afectará mais modalidades. Para o ciclismo, é um novo rude golpe numa luta longe de estar ganha, ou sequer sob controlo.

Thibaut Pinot e Marcel Kittel sentem-se traídos. O primeiro porque era companheiro de Georg Preidler - um dos dois ciclistas para já envolvidos - na Groupama-FDJ e considerava-o um amigo, não apenas um leal colega que tanto o ajudou no Giro e Vuelta. Kittel conhecia Preidler dos tempos em que estiveram juntos na então Argos-Shimano (actual Sunweb) e diz que "como atleta limpo" sente-se "traído por pessoas como estas". "Elas tiraram bons prémios monetários, bons contratos e agora a reputação do nosso bonito desporto está muito danificada", disse o sprinter alemão da Katusha-Alpecin.

A reputação do ciclismo teima em levar socos que a ferem. As suspeitas são antigas, são grandes e dificilmente alguma vez deixarão de existir. Porém, quando parece viver-se "tempos de paz", há casos que abalam novamente a credibilidade. Não é a única modalidade com este problema, mas tal como o atletismo e o próprio esqui, por exemplo, tem estado muito no centro das atenções pelos muitos casos conhecidos publicamente e, principalmente, pela magnitude destes. As confissões de Preidler e de Stefan Denifl são mais um soco. Não será de K.O., mas o ciclismo treme de novo.

Kittel espera que se saiba quem são os donos dos 40 sacos de sangue descobertos numa garagem em Erfurt, na Alemanha. Mark Schmidt é o médico que estará no centro desta rede descoberta durante os Mundiais de esqui, na Áustria. Mais de dez anos depois os sacos de sangue de Eufemiano Fuentes, descobertos na Operação Puerta, continuam por ser quase todos identificados publicamente. É difícil não ver as parecenças entre os dois casos, mas Kittel tem muita razão em pedir que todos sejam identificados e que todos os que estejam ligados a esta nova rede de doping "sejam responsabilizados e punidos severamente", citando o alemão.

Haverá sempre trapaceiros no desporto. Infelizmente essa é a realidade. Apertam-se as regras, mas há sempre alguém a encontrar formas de as contornar. É necessário que, havendo provas que não deixem dúvidas, essas punições sejam feitas e sejam exemplares. As eternas suspeitas têm feito tanto mal, como os casos que vão sendo conhecidos.

A UCI, que nesta segunda-feira pediu mais informação às autoridades austríacas, já as recebeu e suspendeu Preidler e Denifl, ambos sem equipa nesta altura. O primeiro despediu-se no domingo, o segundo não compete desde o ano passado, quando a Aqua Blue Sport acabou. Chegou a assinar pela CCC, mas pouco tempo depois anulou esse contrato por razões pessoais.

Ambos são austríacos, como Matthias Brändle. O corredor da Israel Cycling Academy não utilizou a palavra traição, mas o sentimento é bem parecido. "Teria defendido estes dois atletas à frente de outras pessoas. Nunca teria suspeitado, nem esperado [que teriam recorrido ao doping]. Parece que fui demasiado ingénuo", escreveu no Facebook.

Preidler confessou ter tirado duas vezes sangue, ainda que nunca tenha feito as transfusões. É o primeiro a dizer que só a intenção é crime. Ainda se desconhece o que Denifl terá admitido às autoridades, se fez de facto as transfusões ou se foi algo idêntico a acto de Preidler. A resposta será importante para perceber como é que o seu passaporte biológico não levantou suspeitas à CCC, segundo o director da equipa Jim Ochowicz.

O ciclismo abana novamente e não se pode ignorar o que está a acontecer, pois a modalidade está proibida de ter novos casos da magnitude de Lance Armstrong. A credibilidade tem de vir de todos. Dos que competem, dos que estão nos bastidores das equipas, dos que estão em cargos de responsabilidade do ciclismo. Numa modalidade tão dependente de patrocínios é a sua sobrevivência que está em causa.

Enquanto se espera por novos desenvolvimentos, tentemos concentrar-nos nesta fase tão espectacular da temporada. Não é fácil, é certo. Contudo, Le Samyn foi uma boa corrida e Sénéchal alcançou a sua primeira vitória como profissional. Isso merece destaque. E sábado é dia de Strade Bianche, o sexto monumento (oficiosamente, claro). O que Preidler e Denifl fizeram não é uma nota de rodapé, mas não se transforme as corridas em assunto secundário.

»»Segundo ciclista austríaco implicado em rede de doping. Saiu imediatamente da Groupama-FDJ««

»»Suspenso por quatro anos devido a anomalias no passaporte biológico««

Sem comentários:

Enviar um comentário