2 de abril de 2017

Épico Gilbert reacende sonho dos cinco monumentos

Gilbert venceu na Volta a Flandres com a camisola de campeão da Bélgica
(Fotografia: Facebook Quick-Step Floors)
Há momentos do ciclismo que é preciso ver para crer. É preciso ver para não se lamentar ter perdido algo especial. É preciso ver para não esquecer. Entrar numa fuga quando faltam 95 de 260 quilómetros e a 55 do fim resolver ir sozinho numa Volta a Flandres, uma das corridas de um dia mais exigentes, não está apenas ao alcance dos melhores, é algo apenas possível para ciclistas que escrevem a sua história única numa modalidade que tem tanto de gloriosa como de cruel. Há seis anos parecia que Philippe Gilbert era um dos predestinados a alcançar algo muito especial no ciclismo, mas depois desapareceu numa quase vulgaridade, aqui e ali interrompida por um rasgo daquele Gilbert genial. Em 2017, o belga recupera esses estatuto de génio, que anos recentes só pode ser comparada a um Fabian Cancellara ou Tom Boonen, também autores de fugas que tiveram tanto de loucura, como de espectaculares e épicas.

Com a conquista da Volta a Flandres, Philippe Gilbert reavive um sonho antigo: vencer os cinco monumentos. Ele, um senhor das Ardenas, tinha admito este ano que havia recuperado as boas sensações no pavé, corridas que pareciam estar entregues a um Boonen ou Greg van Avermaet, isto para falar de belgas, que tanta tradição têm neste tipo de corridas. Mas foi muito mais do que boas sensações que foram recuperadas por Gilbert. O grande homem das clássicas recuperou a alegria de competir, a confiança e aos 34 anos dá um sinal inequívoco que ainda tem mais para dar.

Em 2009 e 2010, Gilbert conquistou a Lombardia. 2011 foi a vez  da Liège-Bastogne-Liège. Era uma época em que o belga estava em ascensão, pelo que optou por deixar a Omega Pharma-Lotto (actual Lotto Soudal) e assinar por uma das equipas de maior poderio financeiro, a BMC. Um casamento que parecia ter tudo para dar certo, mas que apenas serviu para que a esperada brilhante carreira do belga se eclipsasse. Ainda ganhou o título mundial em 2012 e dois anos depois conquistaria a sua terceira Amstel Gold Race, mas as grandes vitórias não mais apareceram ao ritmo de outrora. Por outro lado, tinha o compatriota Greg van Avermaet a tentar afirmar-se. Entre os dois cresceu mais uma rivalidade que companheirismo e tendo em conta que Avermaet começou aos poucos a apresentar melhores resultados, o espaço de manobra de Gilbert na equipa americana foi ficando cada vez mais pequeno. Patrick Lefevere estendeu-lhe a mão e levou-o para a Quick-Step Floors. O desejo de mudança era tal que Gilbert nem se importou de assinar apenas por um ano, já que a equipa não tem patrocínio garantido para 2018.

Inicialmente, o plano era dar as clássicas do pavé a Tom Boonen, pois esta lenda belga está em ano de despedida. Nem ano é, já que o adeus acontecerá no Paris-Roubaix do próximo domingo. Gilbert teria depois todas as oportunidades para liderar a Quick-Step Floors noutras corridas, ainda que também estaria ao lado de Boonen em algumas ocasiões. Com o quatro vezes vencedor do Paris-Roubaix e três da Volta a Flandres a não conseguir estar na discussão nas "suas" corridas e com Gilbert aos poucos a aparecer cada vez melhor, Lefevere e o próprio Boonen não tiveram problemas em dar uma liderança a Gilbert no segundo monumento de 2017. Meio partilhada, é certo, pois Boonen apareceu muito bem a atacar na corrida, protegeu o colega, mas ficou a dúvida se até poderia ter tentado algo mais não fosse a dupla avaria mecânica que o deixou a pé. Sim, dupla. Primeiro foi a bicicleta com que começou a corrida, mal recebeu a de substituição, nem se pode dizer que tenha arrancado, pois teve de ir buscar uma terceira. Merecia mais para a sua última Volta a Flandres, que irá continuar sem ter um ciclista que a consiga vencer por quatro vezes.

Como curiosidade, em actividade ficarão agora quatro vencedores. Gilbert, Sagan e Kristoff com uma vitória e Stijn Devolder. O belga tem duas vitórias (2008 e 2009) e apesar de não haver indicações que se vai retirar, em Agosto completará 38 anos e já não é exactamente um candidato a voltar a ganhar o monumento. Compete na Vérandas Willems-Crelan e foi 109º este domingo.

Para a tal história épica que Gilbert escreveu ficará também como Tom Boonen acabou por ser um dos mentores do ataque que deixou para trás a 95 quilómetros da meta os dois grandes nomes do pavé: Peter Sagan e Greg van Avermaet. Porém, em momentos como o que se viu, Boonen bem sabe que o que será e merece ser recordado é a determinação, força de vontade e ambição com que Gilbert acreditou ser possível fazer 55 quilómetros sozinho numa Volta a Flandres.

No início deste texto falou-se em crueldade do ciclismo. Para Gilbert não houve nenhuma, naturalmente. Já para Van Avermaet voltou a "atacá-lo" e desta vez também afectou Peter Sagan. Sep Vanmarcke sabe bem como este desporto é cruel e que queda foi aquela que sofreu. Começando pelo belga da Cannondale-Drapac. Entrou no grupo que fugiu aos 95 quilómetros - de notar que havia haviam ciclistas na frente que foram entretanto apanhados pelo grupo de Gilbert, Boone e Vanmarcke - e tentava encetar a perseguição a Gilbert quando caiu com violência. Fica a ideia que a roda traseira resvalou. Depois do terceiro lugar de 2016, o abandono na Volta a Flandres.

Quanto ao pódio do ano passado, Fabian Cancellara retirou-se e Peter Sagan, o vencedor, teve um dos momentos mais estranhos da sua carreira. Não é inédito cometer erros tácticos, mas deixar-se "apanhar" pelas barreiras quando não tinha necessidade de arriscar daquela forma... Necessidade numa perspectiva de não ir num grupo grande que retirasse espaço num dos muros com caminho estreito. No Kwaremont, Sagan considerou que tinha chegado o tudo ou nada para tentar chegar a Gilbert. Acelerou e procurou a berma menos acidentada comparativamente com o restante empedrado. Atrás dele estavam Oliver Naesen (AG2R) e Greg van Avermaet, dois homens que estavam mais do que dispostos em ajudar o bicampeão do mundo.

Sagan caiu e levou consigo os dois belgas. Momento cruel para um ciclista que mais uma vez prometia animar ainda mais os últimos quilómetros. A última decisão da corrida foi aquela queda. Momento cruel para um Avermaet que em 2016 também caiu, abandonou e falhou o Paris-Roubaix. Desta vez teve uma pontinha de sorte no meio do azar. A sua bicicleta ficou relativamente intacta e o campeão olímpico prosseguiu, juntou-se novamente ao grupo de perseguição, agora apenas com Dylan van Baarle (Cannondale-Drapac) e Niki Terpstra, que em nada ajudou, visto ser companheiro de Gilbert.

Ainda não foi desta que Avermaet conquistou o seu monumento. Lá ficou com mais um segundo lugar na corrida que mais quer ganhar. Terpstra fechou o pódio e premiou uma exibição táctica brilhante da Quick-Step Floors, equipa que finalmente voltou a actuar como a rainha das clássicas que sempre se assumiu, mas que andava longe do trono.

Há que referir ainda Alexander Kristoff e John Degenkolb. O norueguês até entrou na fuga aos 95 quilómetros. Tentou trabalhar, mas sempre pareceu andar no limite e voltou apenas a ganhar o sprint entre o grupo que lutou por nada. Bom, um top dez é sempre importante, mas para quem quer a vitória e já venceu a Volta a Flandres em 2015, um quinto lugar a pouco ou nada sabe. A preocupação deve estar a ganhar proporções assustadoras na Katusha-Alpecin. O seu homem das clássicas simplesmente não consegue atingir os melhores níveis e ameaça passar ao lado das grandes corridas. Outra vez.

John Degenkolb não teve as pernas que mostrou na Gent-Wevelgem. Já não foi apenas um caso de não conseguir estar na frente. O alemão não foi o candidato que se exigia. Mas a culpa não é só sua. Tacticamente a Trek-Segafredo esteve muito mal. Tinha a melhor equipa depois da Quick-Step Floors. Colocou Jasper Stuyven na frente, mas quando o jovem belga cedeu, não se consegue perceber porque razão Fabio Felline voltou a repetir a graça de tentar escapar sozinho - como na Gent Wevelgem - e não trabalhou com os colegas na perseguição. Baarle juntou-se ao italiano e os dois ali ficaram, 10/20 segundos durante muitos quilómetros à frente do grupo que perseguia, mas sem ganhar nada a Gilbert. Para quê? Desgastou-se e quando foi preciso realmente perseguir para tentar apanhar o líder resolveu, tal como na Gent-Wevelgem, não ajudar Sagan, Avermaet e Naesen. E depois não resistiu quando o ritmo aumentou. A Trek-Segafredo tinha a possibilidade de trabalhar em conjunto, mas dividiu-se e perdeu. Degenkolb foi sétimo, mas tal como o quinto lugar de Kristoff, não há razões para festejos.

Ao contrário de Filippo Pozzato (Wilier Triestina), Sylvain Chavanel (Direct Energie) e Sacha Modolo (UAE Team Emirates). Ficaram no top dez demonstrando que a experiência pode ser muito valiosa em provas como a Volta a Flandres. Bons resultados para os três. Já Sonny Colbrelli (Bahrain-Merida), o italiano teve um estranho acidente durante um treino, tendo acabado a ser arrastado pelo carro da equipa. Competiu magoado, mas o décimo lugar comprova a excelente estreia que está a fazer no World Tour.

O texto vai longo e tanto fica por dizer sobre uma corrida que perdurá no tempo como uma das melhores na Volta a Flandres. O Kapelmuur  regressou cinco anos depois. Com uma colocação tão longe da meta não se esperava que tivesse o poder de decisão que o tornou num dos muros míticos do ciclismo. Mas a corrida teve o seu primeiro grande momento de decisão nele, aos 95 quilómetros. Tal como fez na primeira etapa dos Três Dias de Panne, Gilbert usou este muro para começar a construir a vitória. Uma vitória épica.

Para terminar, Nelson Oliveira  merece também ser destacado. Grande corrida do português que terminou na 18ª posição, a 53 segundos do vencedor. Imanol Erviti era o homem da Movistar para a corrida, mas sofreu uma queda e foi Oliveira o melhor da equipa. O companheiro ficou a mais de oito minutos de Gilbert. Já Nuno Bico não terminou a sua primeira Volta a Flandres.

Na próxima semana é a vez do Paris-Roubaix. Mais espectáculo certamente, mas poderá ser sem Philippe Gilbert. Um vencedor da Volta a Flandres não estar em Roubaix será estranho. Porém, para já, só estão escalados sete ciclistas na Quick-Step Floors (as equipas são compostas por oito elementos). Irá resistir Gilbert à tentação de lutar por mais um monumento? Sabe que será o plano B devido ao grande objectivo de Tom Boonen ser despedir-se com uma vitória, mas se for lá, será um fortíssimo candidato. Falta-lhe precisamente o Paris-Roubaix e a Milano-Sanremo para concretizar o seu sonho.

Aqui fica o vídeo com os momentos mais marcantes da Volta a Flandres de 2017.




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