20 de março de 2021

Jasper Stuyven, a surpresa numa Milano-Sanremo táctica e a alta velocidade

© Trek-Segafredo/Getty Images
O perfil da Milano-Sanremo faz cair na tentação de se pensar que, dos cinco monumentos, é o que tem potencial para ser mais aborrecido, até à fase final. 300 quilómetros (este ano 299), muito planos e com subidas que em nada se comparam a uma Flandres ou Lombardia e sem pavés. Não é por acaso que esta corrida é conhecida pelo monumento dos sprinters, ainda que o Poggio e a Cipressa tantas vezes destroem essa ideia. No entanto, essa sensação de possível corrida em que pouco ou nada acontece até aos quilómetros finais não podia ser mais errada, na maioria das edições. Van der Poel não atacou a 50 quilómetros da meta, Van Aert não deu nenhum do seus espectáculos, mas toda a preparação de várias equipas até o Poggio foi de grande beleza táctica. A Milano-Sanremo deste sábado foi um exemplo do melhor que o ciclismo tem, sem ser preciso empedrados ou subidas míticas.

Se inevitavelmente as individualidades ganham destaque, é no colectivo que está o "segredo" de como se prepara o caminho para uma vitória. Depois dos ataques monstruosos de Mathieu Van der Poel em corridas recentes, era o que mais se esperava na Milano-Sanremo. Seria mesmo? Vendo bem as coisas, seria mais do que expectável que tal não acontecesse. A qualidade deste pelotão e o estar em causa a conquista de um monumento fez com que nenhuma equipa estivesse disponível para dar oportunidade ao holandês de tentar o que já se tornou uma imagem de marca do ciclista da Alpecin-Fenix.

O ritmo da corrida foi aumentando e tornou-se óbvio que o objectivo de equipas como a Deceuninck-QuickStep era de garantir que não houvesse surpresas, pelo menos até ao Poggio, onde a maioria das edições se têm decidido nos últimos anos. Da equipa belga era de esperar, afinal contava com Julian Alaphilippe, vencedor em 2019. Sam Bennett tentou aguentar o quanto pôde, mas não ia ser um ano para sprinters, a não ser que se fosse Caleb Ewan. Mas já lá vamos.

Já Ineos... De repente parecia que se estava no Tour, nos bons velhos tempos da equipa britânica. Primeiro com Filippo Ganna e depois com o "capitão" Luke Rowe, o ritmo na Cipressa foi infernal. Esta é a nova Ineos. Uma formação que olha mais além do Tour, ou das três grandes voltas. Uma transformação que está a ser feita sob o efeito Thomas Pidcock.

Ainda tão jovem, 21 anos, acabadinho de chegar ao World Tour, mas a mostrar uma enorme irreverência em procurar desde cedo impor-se e ganhar. Não resultou na Milano-Sanremo e a Ineos viu o inglês ficar de fora do top 10 (o que nem surpreende, visto não ser um percurso que lhe assente bem - ainda assim foi à luta), sem esquecer que também contava com Michal Kwiatkowski, antigo vencedor da prova, mas num momento de forma bem diferente de Pidcock. Não resultou, mas esta Ineos começa a gerar um interesse bem maior nas clássicas.

Por esta altura, Van der Poel - sempre o holandês a chamar a atenção - lá tinha mesmo de fazer um arranque, mas apenas para melhorar um mau posicionamento. Wout van Aert (Jumbo-Visma) é um ciclista bem mais rigoroso nesse aspecto. Porém, o jogo táctico e de colocação continuava a ir muito além de um já pouco ou nada provável ataque de Van der Poel. A Bora-Hansgrohe jogava com Max Schachmann, enquanto Peter Sagan ainda apanhou um ligeiro susto no Poggio, mas não descolou por completo. Aparecia Greg van Avermaet (AG2R-Citröen) e Michael Matthews (BikeExchange). "Velha" guarda vs nova geração! Só podia dar espectáculo.

Pelo meio, o pequeno Caleb Ewan (Lotto Soudal) mostrava porque é entre os chamados sprinters puros aquele que menos se assusta com subidas perto da meta. Já se o viu ganhar em rampas que um sprinter prefere meter uma velocidade mais lenta, mas no Poggio revelou como tinha não só a lição bem estudada, como não o intimidava qualquer aceleração de um Van Aert, por exemplo. Aliás, a postura do australiano pode muito bem ter custado um segundo triunfo consecutivo ao belga da Jumbo-Visma. Com Ewan na roda, Van Aert não perseguiu Stuyven como era necessário para que o sprint não fosse pelo segundo lugar... que Ewan garantiu.

E, entre os nomes referidos à exaustão como candidatos, de primeira ou segunda linha, surgiu um Jasper Stuyven que parecia estar a cair na hierarquia da Trek-Segafredo nas clássicas, muito devido a um Mads Pedersen a melhorar cada vez mais após a conquista do título mundial. Talvez por isso mesmo e também por ser mais conhecido como ciclista forte no pavé, o belga da Trek-Segafredo foi subestimado. Atacou na descida no Poggio. A reacção da concorrência demorou. Até foi Pidcock o primeiro a tentar juntar-se a Stuyven, sem sucesso. Van Aert foi quem mais assumiu a perseguição, com ataques de outros ciclistas. Um deles Soren Kragh Andersen (DSM), que chegou a Stuyven e, inadvertidamente, foi uma ajuda preciosa. O dinamarquês não teve pernas para fazer mais que nono, mas o tempo em que esteve na frente, permitiu a Sutyven ganhar fôlego para sprintar e não se deixar apanhar por todos aqueles que lideravam as apostas.

O próprio admitiu que, se queria tentar ganhar, tinha de fazer algo, arriscar e dar tudo, tudo, tudo. O risco compensou. Para se ser um grande ciclista há que ganhar aos melhores e esta classificação da Milano-Sanremo é de luxo.

Stuyven conta com triunfos na Kuurne-Bruxelles-Kuurne, na Omloop Het Nieuwsblad, venceu uma etapa na Vuelta, entre outros sucessos. Contudo, quando surgiu no World Tour foi apontado como um potencial grande homem de clássicas, mas simplesmente não conseguiu concretizar as altas expectativas. Nunca deixou de ser regular, terminando em posições de topo, mas faltava aquela grande vitória. Pensar-se-ia que viria numa Volta a Flandres ou num Paris-Roubaix, mas Stuyven aproveitou não estar no radar de ninguém na Milano-Sanremo para concretizar mais uma surpresa, numa vitória que lhe fica muito bem, pela carreira que tem feito, mesmo que não seja o mais ganhador dos ciclistas.

Não só não se pode cair na tentação de pensar que a Milano-Sanremo pode ser o mais aborrecido dos monumentos, como se pode esperar que é o que maior surpresa pode trazer. Vincenzo Nibali, um trepador por excelência, vencedor das três grandes voltas, foi lá ganhar em 2018. Um quase desconhecido Gerald Ciolek venceu em 2012, num ano memorável de uma clássica da Primavera realizada num dia do mais rigoroso Inverno, apenas para referir dois exemplos. Junta-se agora Jasper Stuyven, um belga que, apesar de se comportar como um veterano dado os anos de profissionalismo, ainda só tem 28 anos.

E é impossível não referir Philippe Gilbert. Se Peter Sagan há muito que luta por colocar a Milano-Sanremo no seu currículo depois de já ter estado tão próximo - boas indicações do eslovaco depois de começar a época mais tarde devido à covid-19 -, o belga tem este monumento como o último grande objectivo da carreira. Só lhe falta a Milano-Sanremo para completar os cinco, mas aos 38 anos a missão é difícil. É um ciclista que para ganhar precisa de poder atacar e evitar um sprint, mas com o ritmo elevado da corrida deste sábado, rapidamente ficou claro que seria impossível o belga fechar o ciclo dos monumentos. Fica a faltar uma última tentativa em 2022, ano que marcou como o da sua despedida.

Classificação completa, via ProCyclingStats.

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