26 de abril de 2017

Histórias do Giro. A mulher que desafiou os homens e fez uma Volta a Itália

(Fotografia: Wikimedia Commons)
O dorsal 72 tem uma história muito peculiar na Volta a Itália. Foi esse o número da única mulher que competiu lado a lado com os homens numa das três grandes voltas. Alfonsina Strada lutou contra tudo e contra todos, como se pode calcular, tendo em conta que estávamos nos anos 20. Lutou também contra as adversidades típicas de uma corrida, na altura com grandes distâncias e que em nada ajudou o mau tempo, que tornou o Giro de 1924 um autêntico inferno. Porém, quebrou algumas barreiras e acabou recebida como uma heroína, de tal forma que apesar de ter chegado fora do tempo limite numa das etapas, a organização permitiu que terminasse a corrida, ainda que sem direito a qualquer apoio ou prémio monetário. Strada chegaria a Milão e escreveu a sua página, única, na história da modalidade. Não mais deixaram uma mulher colocar em causa o domínio masculino - porque sim, bateu muitos homens em várias corridas e não só no Giro -, mas Strada ganhou o respeito de grandes ciclistas, jornalistas e de muitos adeptos que a aplaudiram e a receberam em apoteose no dia em que acabaria por ser excluída. 

Nessa etapa caiu, a bicicleta ficou com o guiador danificado, Strada ficou ferida, mas terminou a etapa. Metade do guiador era um pau de uma vassoura, que um homem que assistia à passagem dos ciclistas lhe deu. Strada foi a personificação da força, da vontade e da ambição. Podem ter-lhe barrado outras participações, mas o mito estava construído.

Os registos da época não são os mais pormenorizados e fiáveis. Alfonsina Strada nasceu em Modena, pertencendo a uma família simples. As histórias de então contam como Strada cresceu com os irmãos, sendo uma maria-rapaz, andando muito de bicicleta. A mãe quereria que a filha fosse mais "feminina", por assim dizer, mas aos 13 anos, Alfonsina começou a participar em corridas. Quando eram contra raparigas ganhava, quando eram contra rapazes, também tinha tendência a ganhar. O seu primeiro prémio foi um porco vivo.

Aos 20 anos foi de Moncalieri até Turim, batendo então o recorde da hora: 37.192 quilómetros. A marca permaneceu intacta durante 26 anos. Nunca foi bem oficializada, não se sabe bem porquê, sendo uma das teorias que terá batido uma marca feita por um homem e voltamos à então posição da mulher na sociedade daquela época.

Como muitas corridas eram abertas a todos, Strada entrou em várias, incluindo o Giro da Lombardia. Nunca esteve perto de ganhar, mas num ano terminou na 34ª posição e outro na 21ª, à frente de muitos homens. Casou com um ciclista, Luigi Strada - o nome de solteira era Morini - que se tornaria seu treinador.

Em 1924 estava aberta a polémica com a participação aberta a todos no Giro. Havia lugares disponíveis para quem quisesse tentar competir e muitos ciclistas não gostavam dessa ideia, até porque, lá está, podiam entrar mulheres. O director da Gazzetta dello Sport, Emilio Colombo, manteve essas vagas abertas, com o acordo que não teriam direito a qualquer tipo de apoio, como massagistas, mecânicos ou carros. Alfonsina, perdão, Alfonsin Strada inscreveu-se. Tirou o "a" do seu nome, para evitar polémicas sobre ser mulher. Na imprensa, como pensavam que era o homem, chamaram-lhe de Alfonsino. No entanto, acabaria por ser descoberta antes do início do Giro.

A atenção foi imensa, além da esperada polémica. Strada não se intimidou e partiu. A infernal etapa do mau tempo fez com que chegasse 25 minutos depois do tempo limite. As regras foram aplicadas e Strada foi desclassificada. Porém, era uma época bem diferente e os ciclistas faziam algumas das próprias regras, ou seja, por vezes continuavam a competir, mesmo que já não fosse por nenhum prémio. Emilio Colombo percebeu o sucesso e apoio que Alfonsina Strada estava a receber e permitiu que ela prosseguisse, ainda que estivesse por conta própria. O público tratou-a como uma autêntica heroína e Strada, motivada por esse apoio, foi até Milão. Curiosamente, as crónicas dizem que terminou com menos 20 horas do que o lanterna vermelha, mas a classificação não contou devido à chegada fora do tempo limite numa das etapas.

Momento para a história, mas que no imediato serviu apenas para que se garantisse que mais nenhuma mulher voltaria a estar ao lado dos homens numa grande volta. No entanto, dado a sua amizade com muitas pessoas importantes no ciclismo, Strada ainda participou noutras competições. Morreu aos 69 anos (1959), quando ficou presa debaixo da sua moto numa queda, acabando por sofrer um ataque cardíaco.

Em 2010, a banda Têtes de Bois recordou a mulher que tanto lutou para ser ciclista, compondo o tema que pode ouvir (e ver) no vídeo em baixo.



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