23 de maio de 2017

Não era bem sobre isto que se esperava falar na etapa rainha do Giro100

Dumoulin segurou a liderança por 31 segundos (Fotografia: Giro d'Italia)
Já se tinha falado de momentos memoráveis por parte de Tom Dumoulin depois do brilhante contra-relógio e da exibição em Oropa. Esperava-se que o holandês fosse autor de mais algum desses momentos... Mas não era bem como o que aconteceu esta terça-feira. Vincenzo Nibali ganhou a etapa e Dumoulin perdeu 2:18, deixando a concorrência aproximar-se perigosamente. Segurou a liderança por 31 segundos. Porém, do que é que se fala? Do momento em que a natureza humana tramou o ciclista da Sunweb e da atitude da Bahrain-Merida e da Movistar em não esperar pelo maglia rosa.

A discussão tem estado acesa desde que a Movistar não abrandou quando Geraint Thomas, Mikel Landa e mais elementos da Sky ficaram para trás após caírem num acidente que envolveu uma moto da polícia. Tom Dumoulin mostrou o seu fairplay quando fez o pelotão abrandar para esperar por Nairo Quintana, vítima de uma queda no domingo. Hoje, o holandês esteve do outro lado. Teve de parar porque a natureza não perdoa e quando se tem de ir, tem-se mesmo de ir. A imagem de Dumoulin a tirar o capacete, camisola e depois a baixar os calções... Bom, é algo que acontece, mas normalmente não quando se está num momento de discussão tão importante da corrida e em directo para a televisão. Qual foi a reacção dos adversários? Inicialmente claramente optaram por esperar, com a excepção de Ilnur Zakarin (Katusha-Alpecin), que atacou. O grupo acelerou um pouco, mas o russo lá parece ter percebido a falta de respeito que estava a mostrar.

(Fotografia: Giro d'Italia)
O ritmo manteve-se um pouco mais baixo durante uns minutos. Poucos. Insuficientes para que Dumoulin conseguisse reentrar, já que a situação que o obrigou a parar requere sempre alguma perda de tempo. A Bahrain-Merida foi a primeira a impor ritmo, a Movistar não se conteve. A corrida ficou relançada. Vincenzo Nibali lançou-se montanha abaixo, comprovando que é de facto um dos melhores (senão mesmo o melhor) descedor no pelotão. Mikel Landa foi com ele, mas perdeu sobre a meta (foto ao lado). À 16ª etapa ganhou finalmente um italiano. Nairo Quintana ficou um pouco para trás, mas 12 segundos depois chegou e bonificou novamente, agora quatro segundos, depois dos seis no domingo, na tal etapa que Dumoulin esperou por ele.

Perante esta situação, repete-se a questão: esperar ou não esperar? Queda, furo, avaria mecânica, chamamento da natureza... Afinal o que se deve fazer? Não há uma regra escrita, mas há uma espécie de regra de respeito. Mas são muitos os exemplos em que candidatos não esperaram por rivais. Basta recuar um ano no Giro: Steven Kruijswijk, líder indiscutível, caiu numa descida e Nibali fez o mesmo que hoje. A corrida estava lançada, é um facto, mas ainda assim o italiano não se livrou de algumas críticas. Recuando mais um pouco, até 2010 na Volta a França. A corrente saltou a Andy Schleck, Alberto Contador atacou. Ganhou esse Tour, mas um caso de doping custou-lhe a vitória e Schleck é o vencedor oficial.

Do que se fala aqui é de uma opção pessoal. É apenas uma questão porque em certas ocasiões alguém no pelotão, com influência, dá a ordem para se esperar, e noutras... ataca-se, ou pelo menos não se espera, como foi o caso da Movistar no Blockhaus. Numa crónica no jornal As, de Juan Gutiérrez, lê-se que o melhor é nunca parar, para assim haver sempre o mesmo critério. "Todos iguais", escreveu. É talvez a forma mais fácil de evitar estas discussões. Mas será que não há espaço para desportivismo na alta competição?

Esperar por Dumoulin e visto que tinha ficado muito para trás, poderia talvez custado a discussão da etapa por parte dos ciclistas que estavam nesse grupo. Agora a disputa pelo Giro está novamente ao rubro com as distâncias muito mais curtas. Contudo, se Dumoulin perder a Volta a Itália, o eventual vencedor será sempre recordado pelo momento em que o holandês teve de parar por necessidades fisiológicas, mesmo que pela frente esse hipotético vencedor ainda faça algumas grandes exibições.

Seria mais fácil nunca se parar, nunca se esperar, mas os verdadeiros campeões também se mostram pelas suas atitudes além da fome de vencer. Dumoulin mostrou que acima de tudo quer ganhar por ser o mais forte. Nibali já não é novo em aproveitar as desgraças alheias. Vê a oportunidade e aproveita, tem o currículo que tem e é isso que, no fundo, talvez importe, olhando para as coisas de uma forma mais objectiva. Nairo Quintana também não é um santo, afinal não foi esquecido a etapa em que ganhou tempo a Rigoberto Uran no Giro de 2014, num dia confuso, em que grande parte dos ciclistas pensou que a tirada estava neutralizada, incluindo Uran, enquanto Quintana ganhou tempo suficiente para garantir a eventual conquista dessa Volta a Itália.

O colombiano foi muito frio na análise após a etapa desta terça-feira, dizendo que o líder perdeu tempo "por uma razão ou por outra" e que para ele foi um dia "muito positivo". "Gostaria de ter sacado cinco minutos, mas a realidade é esta, o querer e poder não são às vezes o mesmo. Mas definitivamente estamos satisfeitos com o que fizemos hoje", afirmou. Nibali não escondeu o que pensa que deve ser feito nestes casos: "Não espero que alguém aguarde por mim." Habilita-se a que isso aconteça mesmo.

Cada caso têm a sua especificidade e têm o seu espaço para análises que certamente divergem de pessoa para pessoa. O facto é que hoje se esperou um pouco por Dumoulin. Mas foi mesmo só um pouco, talvez mais para dizer que até esperaram. Não chegou para mostrar respeito, mas foi mais do que suficiente para se arranjar novas rivalidades. Correcto ou nem por isso, a realidade é que o ciclista holandês foi brilhante para quem teve de lutar sozinho naquela última subida, sem ajuda de companheiros da equipa, numa etapa de 222 quilómetros, com Mortirolo e duas passagens pelo Stelvio, ainda que a segunda por uma vertente diferente, mas muito difícil.

Num dia em que os rivais do holandês não atacaram - Nibali e Quintana lá se distanciaram de Thibaut Pinot e companhia, mas foi mais uma aceleração do que um ataque digno desse nome e que tanto se esperava -, a imagem que passou é que não há dúvidas que Dumoulin está muito forte nas subidas. Mesmo depois de uma dor de barriga! Os adversários ganharam tempo, mas não convenceram. Dumoulin está feito um voltista de luxo. Merecia mais e a justiça que ainda teve foi que manteve a maglia rosa. Fisicamente foi uma grande exibição, mentalmente foi um exemplo de maturidade. Não entrou em pânico e lá conteve como pôde a raiva que parecia prestes a explodir depois de cortar a meta. Derrotado, mas não abatido. Os testes a Dumoulin prosseguem e ele lá os vai passando.


(Fotografia: Giro d'Italia)
No entanto, neste mesmo dia da etapa rainha do Giro100 houve tempo para mostrar que o desportivismo tem lugar na alta competição. O Mortirolo foi a Cima Scarponi, ou seja, foi a subida que a organização escolheu para homenagear o ciclista que morreu atropelado no final de Abril. Com uma pontuação especial, 75 pontos, e mesmo com Omar Fraile ainda na luta pela camisola da montanha, o espanhol não atacou Luis Leon Sanchez - companheiro de Scarponi na Astana - que foi o primeiro a passar no topo do Mortirolo.

Uma palavra para os ciclistas portugueses. A etapa começou tão bem. Rui Costa (UAE Team Emirates) e José Mendes (Bora-Hansgrohe) integraram a fuga, mas não conseguiram aguentar o ritmo no Stelvio. Rui Costa terminou a mais de 24 minutos de Nibali, o campeão nacional esteve ligeiramente melhor, mas foram 23 minutos perdidos, José Gonçalves (Katusha-Alpecin) esteve muito bem no trabalho para fechar a distância para a fuga e concluído o seu trabalho, foi tempo de começar a recuperação para os próximos dias. Ainda assim, não ficou muito longe de Rui Costa.

Veja aqui as classificações após a 16ª etapa do Giro100.


Giro d'Italia 2017 - Stage 16 - Highlights por giroditalia

Como lidar na televisão ou na imprensa escrita e sites com o que aconteceu a Dumoulin

O que aconteceu a Tom Dumoulin não é muito fácil de lidar para quem precisa de descrever o que está a acontecer. Afinal todos querem evitar as palavras que são praticamente inevitáveis. "Intervalo de conforto", "pausa natural", "aperto", "problemas intestinais"... Fez-se o que se pôde para dar a volta à situação. Já o ciclista não teve com meios termos. "Peço desculpa [pelas palavras], mas tive de cagar." Pronto, está dito e em directo. Foi isso que aconteceu, não vale a pena estar com rodeios. Mas como dar a volta quando se está a fazer um directo para potencialmente milhões de pessoas? "Aliviar-se" foi a palavra escolhida para a tradução.

Por este momento ninguém esperava, mas é quase certo que ninguém o irá esquecer de tão insólito que foi, principalmente o repórter de imagem que focou Dumoulin quando este começou a despir-se e pareceu ficar sem saber muito bem para onde apontar a câmara quando percebeu o que se estava a passar!

Houve quem recordasse que o mesmo aconteceu com Greg Lemond, no Tour de 1985.  O norte-americano optou por não parar. Pediu um chapéu a um colega e o que não conseguiu apanhar... bom, as pernas tinham as provas da dor de barriga inesperada do ciclista. Perdeu algum tempo, mas ao contrário de Dumoulin, conseguiu juntar-se ao grupo dos favoritos.

Dia um pouco mais calmo

A etapa desta quarta-feira é a menos "agressiva" desta semana. Duas segundas categorias e uma terceira esperam o pelotão, mas a parte final também é sempre em ascensão, ainda que não seja uma subida categorizada. Tanto a descida de Aprica, mas principalmente a de Tonale são técnicas e propícias a ataques para os mais destemidos.

Com o Giro relançado depois da etapa rainha do Mortirolo e Stelvio (a Cima Coppi deste ano), é possível que o dia seja mais calmo, tendo em conta que haverá desafios maiores na quinta, sexta, sábado e, claro, o contra-relógio final no domingo. Porém, se há algo que já se percebeu neste Giro é que nunca nada é o que se espera. Quando se espera ataques não existem, quando não se espera muito, acontece algo. O melhor é esperar para ver.



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